top of page

lima barreto

 

      Nesta crônica publicada na Revista Contemporanea de 22 de fevereiro de 1919, Anno II, NUM 14, Lima Barreto comenta o sucesso de Urupês, destacando, porém, que as inúmeras moléstias sofridas pelo caboclo são questão de higiene domiciliar e de regime alimentar, e que o Problema Vital do Brasil são os latifúndios.

​

Revista Contemporanea Anno II NUM 14

Rio de Janeiro, Sábado, 22 de Fevereiro de 1919.

PROBLEMA VITAL (por Lima Barreto)

    Poucas vezes se ha visto nos meios literarios do Brazil, uma estréa como a do sr. Monteiro Lobato. As aguias provincianas se queixam de que o Rio de Janeiro não lhes dá importancia e que os homens do Rio só se preoccupam com coisas do Rio e da gente delle. É um engano. O Rio de Janeiro é muito fino para não dar importancia a uns sabichões de aldêa que, por terem lido alguns autores, julgam que elle não os lê tambem; mas, quando um estudioso, um artista, um escriptor, surja onde elle surgio no Brazil, apparece no Rio, sem esses espinhos de ouriço, todo o carioca independente e autonomo de espirito “está disposto a applaudil-o e dar-lhe o apoio de sua admiração. Não se trata aqui da barulheira da imprensa, pois essa não o faz, senão para aquelles que lhe convem, tanto assim que systematicamente esquece autores e nomes que, com os homens della, todo o dia e hora lidam.

      O sr. Monteiro Lobato com o seu livro “Urupês” veiu demonstrar isso. Não ha quem não o tenha lido aqui e não ha quem o não admire. Não foi preciso barulho de jornaes para o seu livro ser lido. Ha um contagio para as boas obras que se impõem por sympathia.

     O que é de admirar em tal autor e em tal obra, é que ambos tenham surgido em S. Paulo, tão formanhsta, tão regrado que parecia não admittir nem um nem a outra.

      Não digo que, aqui, não haja uma escola delambida de literatura, com uma rethorica trapalhona de descripções de luares com palavras em “l” “l” e de tardes de trovoadas com vocabulos com “r” “r” dobrados; mas S. Paulo, com as suas elegancias ultra-européas, parecia-me ter pela literatura, senão o criterio da delambida que acabo de citar, mas um outro mais exaggerado.

O successo de Monteiro Lobato, lá, retumbante e justo, fez-me mudar de opinião.

      A sua roça, as suas paisagens não são cousas de moça prendada, de menina de boa familia, de pintura de discipulo ou discipula da Academia Julien; é da grande arte dos nervosos, dos creadores, daquelles cujas emoções e pensamentos saltam logo do cerebro para o papel ou para a téla. Elle começa com o pincel, pensando em todas as regras do desenho e da pintura, mas bem depressa deixa uma e outra cousa, pega a espatula, os dados e tudo o que elle viu e sentiu sáe de um só jacto, repentinamente, rapidamente.

     O seu livro é uma maravilha nesse sentido, mas o é tambem em outro, quando nos mostra o pensador dos nossos problemas sociaes, quando nos revela, ao pintar a desgraça das nossas gentes roceiras, a sua grande sympathia por ellas. Elle não as embélleza, elle não as falsifica; fal-as tal e qual.

     Eu quereria muito me alongar sobre este seu livro de contos, “Urupês”, mas não posso agora. Dar-me-ia elle motivo para discorrer sobre o que penso dos problemas sociaes que elle agita; mas são tantos que me emaranho no meu proprio pensamento e tenho medo de fazer uma cousa confusa, a menos que não faça com pausa e tempo. Vale à pena esperar.

      Entretanto. eu não poderia deixar de referir-me ao seu estranho livro, quando me vejo obrigado a dar noticia de um opusculo seu que me enviou. Trata-se do “Problema Vital”, uma collecção de artigos, publicados por elle, no “Estado de S. Paulo”, referentes à questão do saneamento do interior do Brazil.

    Trabalhos de jovens medicos, como os drs. Arthur Neiva, Carlos Chagas, Belisario Penna e outros, vieram demonstrar que a população roceira do nosso paiz era victima desde muito de varias molestias que a alquebravam physicamente. Todas ellas têm uns nomes rebarbativos que me custam muito a escrever, mas Monteiro Lobato os sabe de cor e salteado e, com elle, hoje muita gente. Conheci-as, as molestias pelos seus nomes vulgares; papeira, opilação, febres e o mais difficil que tinha na memoria era — bocio. Isto, porém, não vem ao caso e não é o importante da questão.

    Os identificadores de taes endemias, julgam ser necessario um trabalho systematico para o saneamento dessas regiões afastadas e não são só estas. Aqui, mesmo, nos arredores do Rio de Janeiro, o dr. Belisario Penna achou duzentos e cincoenta mil habitantes atacados de maleitas, etc. Residi, durante a minha meninice e adolescencia, na ilha do Goverandor, onde meu pae era administrador das Colonias de Alienados. Pelo meu testemunho, julgo que o dr. Penna tem razão. Lá todos soffriam de febres e logo que fomos, para lá, creio que em 1891, não havia dia em que não houvesse, na nossa casa, um de cama, tremendo com a sezão e delirando de febre. A mim, foram precisas até injecções de quinino.

      Por esse lado, julgo que elle e os seus auxiliares não amplificam o estado de saude das nossas populações campestres. Têm toda a razão. O que não concordo com elles, é com o remedio que offerecem. Pelo que leio em seus trabalhos, pelo que a minha experiencia pessoal pode me ensinar, me parece que ha nisso uma questão de hygiene domiciliar e de regimen alimentar.

      A nossa tradicional cabana de sapê e paredes de taipa é condemnada e a alimentação dos ro-ceiros é insifficiente além do máo vestuario e do abandono do calcado.

       A cabana de sapê tem origem muito profundamente no nosso typo de propriedade agricola — a fazenda. Nascida sob o influxo do regimen do trabalho escravo, ella se vae eternizando, sem se modificar, nas suas linhas geraes. Mesmo, em terras ultimamente desbravadas e servidas por estradas de ferro, como nessa zona da Noroeste, que Monteiro Lobato deve conhecer melhor do que eu, à fazenda é a forma com que surge à propriedade territorial no Brazil. Ella passa de paes a filhos; é vendida integralmente e quasi nunca, ou nunca, se divide. O interesse do seu. proprietario é tel-a intacta, para não desvalorizar as suas terras. Deve ter uma parte de mattas virgens, outra parte de capoeira, outra de pastagens, casa de moradia. de colonos, curraes, etc.

    Para isso, todos aqueles aggregados ou cousa que valha, que são admittidos a habitar no latifundio têm uma posse precaria das terras que usufruem; e, não sei se está isto nas leis, mas nos costumes está, não podem construir casa de telha, para não adquirirem nenhum direito de locação.

      Onde está o remedio, Monteiro Lobato? Creio que procurar meios e modo de fazer desappare-cer a “fazenda”.

     Não acha? Pelo que li no “Problema Vital”, ha Camaras Municipaes paulistas que obrigam os fazendeiros a construer casas de telhas, para os seus colonos e aggregados. Será bom? Examinemos. Os proprietarios de latifundios tendo mais despezas com os seus miseraveis trabalhadores, esfolarão mais os seus clientes, tirando-lhes ainda mais dos seus miseros salarios do que tiravam antigamente. Onde tal cousa irá repercutir? Na alimentação, no vestuario. Estamos, portanto, na mesma.

    Em summa, para não me alongar. O problema, comquanto não se possa desprezar a parte medica propriamente dita, é de natureza economica e social. Precisamos combater o regimen capitalista na agricultura, o latifundio, dividir a propriedade agricola, dar a propriedade da terra ao agricola, dar a propriedade da terra ao cava a terra e planta e não ao doutor que vive na “Casa Grande” ou no Rio ou em S. Paulo. Já é tempo de fazermos isto e é isto que eu chamaria o “Problema Vital”.

Lima Barreto

​

bottom of page