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o canto do piaga

 

O Canto do Piaga

O Canto do Piaga é um poema Indianista brasileiro escrito pelo poeta Gonçalves Dias, publicado em 1846 na série de Poesias Americanas dos Primeiros Cantos. De acordo com o prólogo da primeira edição, o escritor diz que muito dos seus poemas não têm uniformidade nas estrofes porque ele menospreza regras de mera convenção e que adotou todos os ritmos da metrificação portuguesa. 

No poema, um Piaga (pajé) conta aos guerreiros da sua tribo uma premonição que teve em forma de visão. Nela, ele conta que via fantasmas que, em caravelas (Negro monstro os sustenta por baixo, / Brancas asas abrindo ao tufão), futuramente viriam destruir o seu povo.

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O Canto do Piaga

​

I.

​

O’ Guerreiros da Taba sagrada,

O’ Guerreiros da tribu Tupi,

Fallão Deoses nos cantos do Piaga,

O’ Guerreiros, meos cantos ouvi.

 

Esta noite — era a lua já morta —

Anhangá me vedava sonhar;

Eis na horrivel caverna, que habito,

Rouca voz começou-me a chamar.

 

Abro os olhos, inquieto, medroso,

Manitôs! que prodigios que vi!

Arde o páo de resina fumosa.

Não fui eu, não fui eu, que o accendi!

 

Eis rebenta a meos pés um phantasma,

Um phantasma d’immensa extensão;

Liso craneo repousa a meo lado,

Feia cobra se enrosca no chão.

 

O meo sangue gelou-se nas veias.

Todo inteiros — ossos, carnes — tremi,

Frio horror me coou pelos membros;

Frio vento no rosto senti.

 

Era feio, medonho, tremendo,

O’ Guerreiros, o espectro que eu vi.

Fallão Deoses nos cantos do Piaga,

O’ Guerreiros, meos cantos ouvi!

 

II.

​

Porque dormes, ó Piaga divino?

Começou-me a Visão a fallar,

Porque dormes? O sacro instrumento

De per si já começa a vibrar.

 

Tu não viste nos céos um negrume

Toda a face do sol offuscar;

Não ouviste a coruja, de dia,

Seos estridulos torva soltar?

 

Tu não viste dos bosques a coma

Sem aragem — vergar-se e gemer,

Nem a lua de fogo entre nuvens,

Qual em vestes de sangue, nascer?

 

E tu dormes, ó Piaga divino!

E Anhangá te prohibe sonhar!

E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,

E não pódes augurios contar?!

 

Ouve o annuncio do horrendo phantasma,

Ouve os sons do fiel Maracá;

Manitôs já fugirão da Taba!

O’ desgraça! ó ruina! ó Tupá!

 

III.

 

Pelas ondas do mar sem limites

Basta selva, sem folhas, hi vem;

Hartos troncos, robustos, gigantes;

Vossas matas taes monstros contêm.

 

Trás embira dos cimos pendente

— Brenha espessa de vario cipó —

Dessas brenhas contêm vossas matas,

Taes e quaes, mas com folhas; é só!

 

Negro monstro os sustenta por baixo,

Brancas azas abrindo ao tufão,

Como um bando de cândidas garças,

Que nos ares pairando — lá vão.

 

Oh! quem foi das entranhas das aguas,

O marinho arcabouço arrancar?

Nossas terras demanda, fareja...

Esse monstro... — o que vem cá buscar?

 

Não sabeis o que o monstro procura?

Não sabeis a que vem, o que quer?

Vem matar vossos bravos guerreiros,

Vem roubar-vos a filha, a mulher!

 

Vem trazer-vos crueza, impiedade —

Dons crueis do cruel Anhangá;

Vem quebrar-vos a maça valente,

Profanar Manitôs, Maracás.

 

Vem trazer-vos algemas pesadas.

Com que a tribu Tupi vai gemer;

Hão de os velhos servirem de escravos,

Mesmo o Piaga inda escravo ha de ser!

 

Fugireis procurando um asilo,

Triste asilo por invio sertão;

Anhangá de prazer ha de rir-se,

Vendo os vossos quão poucos serão.

 

Vossos Deoses, ó Piaga, conjura.

Susta as iras do féro Anhangá.

Manitôs já fugirão da Taba,

O’ desgraça! ó ruina! ó Tupá!

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O Canto do Piaga (português moderno)

 

I.

 

O’ Guerreiros da Taba sagrada,

O’ Guerreiros da tribo Tupi,

Falam Deuses nos cantos do Piaga,

O’ Guerreiros, meus cantos ouvi.

 

Esta noite — era a lua já morta —

Anhangá me vedava sonhar;

Eis na horrível caverna, que habito,

Rouca voz começou-me a chamar.

 

Abro os olhos, inquieto, medroso,

Manitôs! que prodígios que vi!

Arde o pau de resina fumosa,

Não fui eu, não fui eu, que o acendi!

 

Eis rebenta a meus pés um fantasma,

Um fantasma d’imensa extensão;

Liso crânio repousa a meu lado,

Feia cobra se enrosca no chão.

 

O meu sangue gelou-se nas veias,

Todo inteiro — ossos, carnes — tremi,

Frio horror me coou pelos membros,

Frio vento no rosto senti.

 

Era feio, medonho, tremendo,

O’ Guerreiros, o espectro que eu vi.

Falam Deuses nos cantos do Piaga,

O' Guerreiros, meus cantos ouvi!

 

II.

 

Porque dormes, ó Piaga divino?

Começou-me a Visão a falar,

Porque dormes? O sacro instrumento

De per si já começa a vibrar.

 

Tu não viste nos céus um negrume

Toda a face do sol ofuscar;

Não ouviste a coruja, de dia,

Seus estrídulos torva soltar?

 

Tu não viste dos bosques a coma

Sem aragem — vergar-se a gemer,

Nem a lua de fogo entre nuvens,

Qual em vestes de sangue, nascer?

 

E tu dormes, ó Piaga divino!

E Anhangá te proíbe sonhar!

E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,

E não podes augúrios cantar?!

 

Ouve o anúncio do horrendo fantasma,

Ouve os sons do fiel Maracá;

Manitôs já fugiram da Taba!

O’ desgraça! ó ruína! ó Tupá!

 

III.

 

Pelas ondas do mar sem limites

Basta selva, sem folhas, i vem;

Hartos troncos, robustos, gigantes;

Vossas matas tais monstros contêm.

 

Traz embira dos cimos pendentes

— Brenha espessa de vário cipó —

Dessas brenhas contêm vossas matas,

Tais e quais, mas com folhas; e só!

 

Negro monstro os sustenta por baixo,

Brancas asas abrindo ao tufão,

Como um bando de cândidas garças,

Que nos ares pairando — lá vão.

 

Oh! quem foi das entranhas das águas,

O marinho arcabouço arrancar?

Nossas terras demanda, fareja...

Esse monstro... — o que vem cá buscar?

 

Não sabeis o que o monstro procura?

Não sabeis a que vem, o que quer?

Vem matar vossos bravos guerreiros,

Vem roubar-vos a filha, a mulher!

 

Vem trazer-vos crueza, impiedade —

Dons cruéis do cruel Anhangá;

Vem quebrar-vos a maça valente,

Profanar Manitôs, Maracás.

 

Vem trazer-vos algemas pesadas,

Com que a tribo Tupi vai gemer;

Hão de os velhos servirem de escravos,

Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!

 

Fugireis procurando um asilo,

Triste asilo por ínvio sertão;

Anhangá de prazer há de rir-se,

Vendo os vossos quão poucos serão.

 

Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,

Susta as iras do fero Anhangá.

Manitôs já fugiram da Taba,

O’ desgraça! ó ruína! ó Tupá!

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